sábado, 7 de novembro de 2009

A Santa Casa que precisa de Misericórdia

Como uma instituição de saúde tão respeitada pode não respeitar seu público, mantendo um corpo de funcionários sem preparo, principalmente na lida diária com sua matéria-prima; seres humanos.

O relato a seguir conta uma saga que eu e minha família vivemos há alguns dias na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

No último dia 19 de outubro de 2009, minha mãe, uma senhora com 82 anos foi vítima de atropelamento na Av. Eng. Caetano Álvares, no Mandaqui.

Socorrida pelo SAMU, foi levada ao Pronto Socorro da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo aproximadamente às 15 horas, onde teve os primeiros atendimentos.

Uma mulher forte e batalhadora, trabalhou em casa e fora dela por muitos e muitos anos para ajudar no sustento da família, tendo criado 4 filhos e muitos netos, assim como muitas outras mulheres idosas deste nosso país de desigualdades e falta de políticas públicas coerentes e decentes.

O acidente provocou sua queda no asfalto, ferindo seu braço direito e sua perna esquerda. Também bateu com a cabeça na guia o que provocou um inchaço considerável.

Os médicos plantonistas da Santa Casa (havia muitos de jalecos brancos com inscrição Dr. Fulano, Dra. Cicrana) examinaram e para formar seu diagnóstico mais preciso, solicitaram radiografias e uma tomografia da cabeça.

Então começou o martírio da minha mãe.

As radiografias foram tiradas, não sem antes minha irmã insistir muito com o pessoal do P.S. Após a análise das radiografias, que não apresentavam anormalidades, os médicos disseram que era preciso aguardar a tomografia para então, depois do parecer dos médicos especialistas, avaliarem se ela teria ou não alta.

Durante esta longa noite, esta idosa de 82 anos permaneceu numa maca dura e suja, no corredor do P.S., tomando um coquetel de medicamentos via intra-venosa que incluía glicose, mesmo constando no prontuário que era diabética e hipertensa.

Bem, o diabetes subiu para quase 300 e aplicaram insulina como deve mandar os protocolos padrões. Depois de 2 horas aproximadamente, e somente após nossa insistência para que eles verificassem novamente o nível do diabetes, o resultado foi 72.

Esta queda brusca fez com que ela começasse a suar muito e sentir calafrios, reação típica do processo de hipoglicemia. Procuramos alguém que pudesse fazer alguma coisa, mas, inacreditavelmente, diante de tantos jalecos brancos, ninguém podia ajudar.

Os argumentos eram os mais diversos:

Médicos:

___ Sou clínico, precisa falar com o pessoal da cirurgia. Da cirurgia não tinha ninguém naquela hora.

Enfermeiros:

___ Não sou desta área, fale com alguém desta área. Daquela área não havia nenhum enfermeiro naquele momento.

Passaram-se quase 1 hora até que alguém resolveu chamar uma médica que providenciou uma injeção de glicose para equilibrar o nível do açúcar.

Por sinal, esta médica foi a única pessoa atenciosa que encontramos na Santa Casa nesta madrugada do dia 20 de outubro e por isso faço questão de destacar o nome da Dra. Ana Paula.

Pois bem, isso tudo ocorria enquanto aguardávamos a tal tomografia.

Indagamos o porquê da demora e a resposta foi a seguinte:

___Já pedimos mas o pessoal da Tomo ainda não chamou. São eles que controlam.

Ora, quem sabe da urgência é ou não o médico?

Justificavam dizendo que, como minha mãe estava bem, passavam casos mais graves na frente.

Estava bem até quando? Estável significa bem? Não entendo o jargão médico mas não sou tão ignorante quanto eles imaginavam.

Ponderamos o fato de ela ter 82 anos, diabética e hipertensa, mas nossos argumentos não foram considerados.

Enfim 6 horas da manhã do dia 20. Troca de turno dos médicos e enfermeiros então, um “sujeito” que me foi apontado como médico avaliador, foi consultado sobre a possibilidade dela ter alta sem a tomografia.

Conscienciosamente, vale a pena destacar, ele disse que deveríamos esperar a tomografia. Cansado também, por estar há mais de 8 horas em pé ao lado da maca da minha mãe, e por perceber a agonia dela com muitas dores na perna e no braço, perguntei-lhe se iria demorar mais tantas horas.

Com uma grossura ímpar o “sujeito” apontado como médico avaliador, bradou com o dedo em riste na minha direção:

___Não fala nada. Eu não vou ouvir nada do que vai dizer. Reclame com o pessoal daqui.

E saiu como se estivesse discutindo com adversários num campo de futebol depois de muitas cervejas.

Isto ocorreu na presença da Dra. Stephanie, que estava assumindo o turno.

Indignado, perguntei a ela o nome do “sujeito” e ela veementemente se recusou a fornecer, tomando uma atitude claramente corporativista. Mas foi justamente por ter percebido que aquela não era a atitude correta de um profissional da saúde em relação aos familiares de uma paciente que, por total incompetência da Santa Casa, estava há tanto tempo aguardando uma tomografia.

Passaram-se mais algumas horas e minha mãe sentiu necessidade de urinar, depois de tanto soro tomado. Neste momento ela estava acompanhada pelo meu sobrinho que pediu ajuda a vários enfermeiros e até médicos.

Pasmem, mas ninguém se prontificou em arranjar uma mísera “comadre” como chamam o urinol nos hospitais. E ela não agüentando se urinou na maca.

Cena dantesca para um hospital que se diz padrão em atendimento de idosos.

Como meu sobrinho ficou indignado e começou a reclamar, foi intimidado pelos seguranças do local.

Uma vergonha....

Enfim, depois de 20 horas finalmente a tomografia foi realizada. Agora era só o médico avaliar o exame para fornecer a Alta. Coisa simples, caso estivéssemos falando de um hospital, mas na Santa Casa de Misericórdia não. O médico somente deu uma olhada na tomografia depois de 5 horas que tinha sido realizada.

Há que se perguntar onde estão os erros;

• Se nos profissionais que não são competentes como teriam a obrigação de ser;
• Se na estrutura extremamente burocrática que beneficia os procedimentos em detrimento do ser humano;
• Se na falta de recursos materiais para atender a demanda a que se propõe a Santa Casa.

Bem, o estatuto do idoso prevê no seu artigo 3:

Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
I – atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e
privados prestadores de serviços à população;

Sem ser advogado, posso compreender que a Santa Casa não seguiu o que estabelece este artigo, pois em momento algum priorizou o atendimento à uma idosa de 82 anos nas condições tão incômodas e doloridas em que estava.

Ora, mas pra que seguir o estatuto. Ele só serve de plataforma eleitoeira.
Os idosos, diz o IBGE, estão cada vez mais sendo um contingente considerável da população brasileira. Como se os senhores médicos, enfermeiros, seguranças e diretores da Santa Casa estivessem neste mundo de meu Deus por geração espontânea. Ninguém tem mãe, pelo menos que precise de um hospital deste naipe.

Agora vamos analisar este caso à luz dos artigos 4º, 15º e 18º do Estatuto do Idoso;

Art. 4º Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência,
crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na
forma da lei.

Art. 15. É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de
Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e
contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da
saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.

Art. 18. As instituições de saúde devem atender aos critérios mínimos para o atendimento às
necessidades do idoso, promovendo o treinamento e a capacitação dos profissionais, assim
como orientação a cuidadores familiares e grupos de auto-ajuda

Que apelo deveríamos fazer aos administradores da “renomada” Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo?

Pelo menos que honrasse o que divulga no histórico da instituição pelo site oficial, como sendo sua missão:

A Missão da Irmandade é exercer a caridade e a misericórdia para o socorro e a assistência aos enfermos, idosos, inválidos e desamparados, prestando serviço de assistência à saúde buscando atingir a excelência no atendimento. O objetivo é ser uma Instituição de excelência, reconhecida nacional e internacionalmente pela assistência, ensino e pesquisa na área da saúde.

“Exercer a caridade... a idosos...buscando atingir a excelência no atendimento.”

Está muito longe de alcançar, se isto for mais do que simples retórica e estiver sendo encarado pela administração como filosofia de trabalho.

Em outro trecho do referido site, afirma:

A Santa Casa oferece atendimento voltado para a população em geral e dispõe de recursos avançados no campo tecnológico, além de formação profissional especializada.

Tradicionalmente, transmite respeitabilidade aos seus usuários, firmando, cada vez mais, sua boa imagem na área hospitalar.

“dispõe de recursos avançados no campo tecnológico..”

Ou seja, uma idosa de 82 anos aguardou numa maca dura e suja por 20 horas para fazer uma simples tomografia da cabeça.

“formação profissional especializada.”

Ou seja, um médico avaliador arrogante, insensível e uma equipe de enfermeiros despreparada para lidar com seres humanos.

Seguindo no seu discurso fantasioso, apresenta sua sentença de morte:

“Pelo atendimento que oferece e por ser uma das instituições hospitalares que mais presta serviços ao SUS, a Santa Casa constitui-se em um dos maiores centros de referência médica nacional.”

Se para o Ministério da Saúde e para o Conselho Regional de Medicina os profissionais desta instituição são referência, vou procurar atendimento no Paraguai, pois lá, pelo menos, eles confessam que são “imitações baratas dos originais”.

Para fechar com chave de ouro o discurso do seu site, a Santa Casa arremata:

“Enfim, a missão da Santa Casa pode ser resumida em salvar vidas. Todos os dias, todas as horas, todos os minutos, todos os segundos, estamos sempre prontos para atender a quem nos procura, seja através dos nossos Prontos Socorros ou dos nossos Prontos Atendimentos.”

• Salvar vidas passa por oferecer um tratamento digno e honesto aos pacientes e familiares;
• Passa por prestar esclarecimentos sempre que solicitados, evitando criar falsas impressões entre os familiares e aos próprios pacientes;
• Passa por ter uma conduta ética e responsável, assumindo suas deficiências materiais e humanas.

Finalmente, salvar vidas começa por entender os desejos e necessidades dos seres humanos que, salvo engano, são ainda a razão e o motivo da existência de uma Instituição como a Santa Casa de Misericórdia.

2 comentários:

  1. Roberto ... lamento isto tudo. Até me motivei a escrever um artigo...Martin

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  2. Meu Deus Roberto! Isso merece um processo! Que falta de respeito.. e o pior de tudo é que todos os dias centenas de pessoas passam por situações como estas nos hospitais do Brasil.

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